Biografia: Safira Moreira nasceu no bairro do Engenho Velho da Federação, Salvador, em 1991. Há anos trabalha com imagens de pessoas negras, ao redor de uma política da memória. É diretora de fotografia, diretora e roteirista. Formou-se em cinema na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Roteirizou, dirigiu e montou seu primeiro curta-metragem “Travessia”, premiado em diversos festivais nacionais e internacionais; distribuído pela Vitrine Filmes em 2018; e em 2019 filme de abertura do Festival Internacional de Rotterdam. Dirigiu a fotografia do curta “Eu, minha mãe e Wallace” (Irmãos Carvalho) premiado como Melhor Filme pelo júri popular do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e do longa-metragem “A Matéria Noturna” (Bernard Lessa), premiado como melhor filme na mostra Futuro Brasil no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Em 2019 roteirizou e dirigiu a série documental “Iyas Idanas – Mulheres da Cozinha”, em fase de montagem. Trabalha desde 2018 no longa-metragem CAIS, premiado no FUNDO AVON MULHERES DO AUDIOVISUAL e no RUMOS ITAÚ CULTURAL.
Conheci o trabalho de Safira Moreira em 2017, em sala de aula, através do filme Travessia (2017), que me foi apresentado pela cineasta Yasmin Thainá. Yasmin já havia realizado Kbela (2013), curta que aposta em performances para dar forma e visualidade a experiências de mulheres negras. Dessa vez, na disciplina de montagem do curso de cinema da PUC-Rio, estimulei a turma a produzir um experimento a partir de imagens pessoais. Foi quando Yasmin, provocada por Travessia, chamou a minha atenção para a relação entre a ausência de fotografias de famílias pretas no Brasil e o baixo poder aquisitivo dessas famílias, o que seria uma consequência da escravidão e do racismo no país.
O curta parte de uma fotografia em preto e branco de uma mulher negra com uma criança branca no colo. Ao espectador, não é revelada a integralidade da imagem de uma só vez. A partir de diferentes reenquadramentos na montagem, percebemos detalhes dos corpos e do espaço que ocupam a imagem: os pés calçados com o chinelo surrado sobre o chão de terra, o mato que cresce de modo quase selvagem na paisagem, a pele negra de mãos femininas que seguram no colo com cuidado um bebê branco, um leve sorriso esboçado quando o olhar da mulher encara a câmera. No verso da fotografia, a inscrição “Tarcisinho e sua babá” revela a violência da imagem a princípio tão terna: não interessa o nome, a história, o passado e a experiência dessa mulher que ocupa o centro da imagem, ela é a babá. No entanto, a partir da montagem, essa presença ganha protagonismo e esse corpo revela a sua força. Como aponta Juliano Gomes em crítica ao filme, “há ali uma presença negra que afirma uma presença atual e uma ausência histórica”[1]. A partir dessa imagem de uma mulher negra anônima, a babá de Tarcisinho, Safira Moreira fala de si, da própria família e do desejo de preencher ausências com novos registros. Safira busca imagens que restam e cria imagens que faltam a partir de performances de famílias negras que posam no presente para a câmera ao final do filme.
Desde o primeiro momento, fiquei curiosa sobre a busca dessas fotografias com inscrições raras desses corpos negros, dessas imagens que restam. Essa não foi a única fotografia encontrada por Safira. Em 2015, a artista passou a percorrer feiras de antiguidades do Rio de Janeiro, onde morava, e de outras que visitava em busca de registros que traziam as inscrições, as poses, as roupas e olhares de pessoas negras. O que encontrou foram velhos álbuns de família de pessoas brancas, datados entre os anos 1940 e 1950. O processo de garimpagem envolveu horas de pesquisa e de um olhar minucioso para as imagens em busca de algo raro. A cada vez que percorria os espaços urbanos procurando esses registros, percrustava cerca de 300 imagens, gastava horas sentada olhando o material e raramente encontrava o que procurava. Um trabalho imersivo e consciente da necessidade de constituir um pequeno acervo com essas fotografias.
Colocar perguntas sobre as imagens que restam é um modo de recuperar a história de anônimos que algum dia se depararam com uma câmera. São os corpos, expressões e gestos daqueles que atravessaram os caminhos dos fotógrafos e que ficaram impressos em fotografias que nos instigam a pensar nas singularidades dos sujeitos filmados, nas presenças que ficaram marcadas nos registros. Ao olhar para uma dessas fotografias, Safira descreve o mal estar de perceber que a mulher negra no canto da cena montada pela família branca está ali a contra-gosto. São fabulações incitadas por esses registros e produzidas pela cineasta que pensa em uma política dos arquivos fotográficos e cinematográficos como uma política da memória.
Ficamos curiosos para saber o que Safira fará com o pequeno acervo que vem coletando a medida que percorre os espaços urbanos e que vem sendo constituído nos últimos anos. Recentemente, a artista fez intervenções nas imagens, apagando o rosto das pessoas brancas presentes nas fotografias. Na exposição artística virtual Acervo Imediato[2], as intervenções são acompanhadas de comentários em audio de Safira. Na apresentação do projeto, ela explica. “Neste trabalho-processo, fabulo sobre apagar e reescrever as histórias, soterrando o rosto dos sujeitos brancos com café e açúcar, símbolos do princípio e permanência da política extrativista-branca-exploradora”.
O trabalho pode ser conferido no link:
https://acervoimediato.denda.com.br/acervo-safira/
[1] GOMES, Juliano. Ilha, Travessia ou por um cinema negro desobediente. http://revistacinetica.com.br/nova/juliano-ilha-travessia-ou-por-um-cinema-negro-desobediente-2021/
[2] Exposição virtual acessível em: https://acervoimediato.denda.com.br/acervo-safira/