Polícia e pombo, ônibus e praia, crack e poste

Um ano e meio atrás, aparecem no instagram alguns vídeos onde cenas de um Rio de Janeiro invisibilizado explodem na tela do celular, invadem o mundo maquiado da rede social e instalam um curto-circuito  no  algoritmo  do  “bom-  gosto”.  São  os  vídeos  de  @najur_,  Ana  Julia  Theodoro,  jovem skatista carioca que registra pequenos momentos da vida real em suas andanças – seja de moto, de skate, ou no fundo do mar – e depois os arranja em uma montagem frenética, como verdadeiras sinfonias da cidade. Não possuem mais de um minuto cada, mas dentro do seu espaço de tempo cabem muitas imagens; entre montagens mais e menos velozes, a média geral dificilmente passa de 1 segundo para cada plano que compõe o todo.

Os vídeos circulam soltos na rede, pelo território hostil do Instagram, onde imperam padrões – de beleza, de consumo – globais. O mais assistido chegou a 1 milhão de visualizações: eles viralizaram de modo tão orgânico – neste aplicativo cujo algoritmo torna o engajamento uma tarefa especialmente complexa – que esta repercussão pode ser entendida como sintoma de algum fervor sensorial. Claro, o Rio de Janeiro, por si só, funciona tal qual uma commodity extremamente valorizada, que agrega um bocado a qualquer produto/pessoa; mas @najur_ não parece muito disposta a comprar o pacote completo. Ela vai costurando, por cima do cartão-postal, sua catalogação dessas marcas do insólito, do transgressivo e do desviante; do feio, do inaceitável e do tosco. Traz lances perdidos do espaço-tempo, eterniza o microscópico. Até usa de modo bastante direto as ferramentas do reels, tomando músicas célebres como fio-condutor da eletricidade imagética, quase como videoclipes (recentemente, foi premiada pelo clipe de “Crash”, de Juçara Marçal); mas talvez esteja, afinal, neste gesto, realizando um certo potencial adormecido da máquina, testando limites do celular para fazer um cinema do nosso tempo.

8 planos seguidos do vídeo Bandidoh

É até difícil generalizar os temas que são abordados nos filmes, por causa de um declarado senso de imprevisibilidade que norteia cada um. No entanto, existem alguns motivos inegavelmente recorrentes que atravessam os diversos trabalhos. A polícia e seu arsenal de guerra; os garotos pulando na Baía de Guanabara ao pôr-do-sol; os transportes, metrô, ônibus, trem; a população de rua, os loucos ou cracudos, bem como trabalhadores e engravatados; lixo, pixações nos muros, ruínas; são os signos da guerra e possuem um lugar privilegiado em sua obra. Mas tudo, virtualmente, pode ser retido por sua impassível câmera de celular, e este é o mote do jogo. Os mínimos detalhes, os corpos e lugares: qualquer coisa que atenda, para seu olhar, ao sentimento do absurdo. As evidências maiores, enfim, de que o Rio de Janeiro é um grande campo de batalha, e seu cenário surreal, abominável mas belo, caótico e sublime, é reconstruído através da busca por aquilo que menos é mostrado (ou, quando o é, por uma lente saturada) e, no entanto, parece constituir o cerne da experiência de viver aqui – aquilo que se vê ao andar nas ruas, mas também aquilo que corre subterraneamente pelo imaginário coletivo.

Penso nas várias representações do Rio às quais o vídeo parece se opor: dos telejornais mais sensacionalistas aos mais cínicos, em que há aquele agressivo filtro da mediação higienizando todos os acontecimentos horríveis que são mostrados. Imbui as pessoas fragilizadas de passividade, e as encapsula em papéis pré-fabricados. Todo dia trazem à tona imagens da pobreza, da criminalidade, da violência, e sempre a partir da mesma abordagem supostamente objetiva, aquela aparente frieza protocolar que serve para planificar tudo, racionalizar o inconcebível, e nos distanciar do que está ao lado. O discurso da cultura de massa mobiliza tensões e angústias da sociedade para administrá-los e compensá-los em funções utópicas, transcendentes. Os piores assuntos são capazes de ser amenizados e entregues numa embalagem de normalidade que, ao fim do dia, assegura nossa esgarçada cordialidade social – e resta, das reportagens televisivas, um vago sentido de denúncia e crítica das “mazelas do povo”, estes rastros do atraso que ainda hão de ser extirpados, sempre configurando a favela como incompletude e carência, foco infernal das desgraças coletivas. A força das imagens de @najur_ deve-se justamente por superar o paradigma da denúncia, que geralmente acaba por se enredar numa confusão entre crítica social e mero desejo por espetáculo.

8 planos seguidos do vídeo ‘COMPILADO’

Suas imagens vêm como presença bruta, com o fascínio pelo espontâneo que dá peso ao registro “amador” e marca a estética do vídeo viral da internet. Mais do que testemunhar, ela se propõe a capturar flagrantes, aqueles instantes que só poderiam ser gravados por um observador atento e perspicaz. Sobre cada um paira o selo da realidade crua. Posteriormente, não ficam submetidos a uma retórica simplista; a busca parece ser mais pela organização de uma simultaneidade, um tudo-de-uma-vez. Na montagem está o gesto anárquico, tradicionalmente carnavalesco, que deseja impor a tudo uma severa lei de equivalência, que devora a paisagem sem dar nada em troca, senão o prazer dessa equalização irreverente que desmonta categorias e hierarquias, devolvendo ao elemento cotidiano sua face selvagem. É precisamente nessa maneira de reunião dos fragmentos onde mora a verve da revolta.

A música apenas torna rítmica esta enxurrada e extrai por completo a potência de cada imagem. Tudo fica imbuído de um sentido francamente épico. Com músicas como “A Vida é Desafio”, dos Racionais, “Até Ǫuando?” de Gabriel o Pensador, ou “A Carne” de Elza Soares, os filmes aderem a um tom mais duro, emotivo; outros chegam a utilizar o Hino Nacional, ou um rock pesado, ou músicas pop como Fernanda Abreu e Emílio Santiago. Mas o que realmente predomina é o funk, o funkzão, gastação de onda máxima. E é o ritmo nervoso, tresloucado, do funk carioca, que ressignifica a aventura. O funk é incumbido dessa expurgação momentânea do trágico destino que talvez ainda aguarde esta desordem terrena.

Você está no Instagram, no mundo das imagens replicadas ao infinito, mas as imagens de @najur_ você não escolhe, não olha o quanto quiser. É numa fração de segundo – a partir desse contato do qual formamos apenas uma impressão muito imediata, um choque mental – que podemos experimentar a visão desse lado da cidade maravilhosa; cada pedaço justaposto a todo o resto. Alegria e tristeza, tudo junto ou nada. De suas descrições precisas e impiedosas do campo de batalha que é o Rio, emerge um outro tipo de beleza que não se reduz ao desejo de incitar indignação ou compaixão. Um tipo contestador de beleza, que se abstém de tentar calcular um caos que não é mensurável. Tampouco sua sensibilização passa pelo pressuposto de uma “humanização”, ou apela para a individuação das “histórias de vida” – como buscou, por exemplo, a página Rio Invisível. Outra ética vai se configurando aqui: uma que abarca a vertigem da proximidade; que aborda fatos sociais enquanto, primeiro, fenômenos estéticos. Toca nas feridas do coletivo, mobiliza-nos emocionalmente; mas não em troca de assegurar, ao fim, qualquer sentido utópico de que as coisas vão melhorar. Pelo contrário, reafirma incondicionalmente a distopia do presente. Reafirmar sua estranha beleza seria como a última forma de manter a sanidade por aqui.

Publicado por João Pedro Rodriguez

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