Para minhas avós, Gloria e Ceci
Na companhia da minha avó, estou sentada na calçada de uma rua qualquer, no bairro do Encantado, Zona Norte do Rio de Janeiro. Pequena, devo ter sete ou oito anos, espero ansiosa pelo bate-bola desconhecido que, em algum momento do bloco, vai passar por nós. É carnaval. Como todos os anos, eu e minha avó pegamos o ônibus na Tijuca na direção do subúrbio para vermos a figura mascarada de trajes bufantes. Como todos os anos, saía da cidade de Curitiba em dezembro, com meus pais e irmão, para passar as férias no Rio e visitar a família.
O carnaval da TV e as festas infantis dos clubes, mesmo acompanhada dos amiguinhos, me interessavam pouco. Idolatrava aquela figura mascarada, insolente e andrógina. O fascínio por aquele ser enganador era tal que jamais esqueci quando vi pela primeira vez a figura de corpo e voz indefinidos de Ney Matogrosso, em uma apresentação do Secos e Molhados, no programa do Fantástico. Lá estava eu e os primos, diante da TV, pasmos com suas ameaças de virar um animal pelo avesso. Era certamente um bruxo. O rosto oculto pela máscara, o cabelo preso por uma fita vermelha num coque atrás da nuca, a grinalda dourada na cabeça e o corpo cabeludo. Que criatura radiante, bela, espantosa! O corpo meio homem meio mulher meio bicho dançava um bailado bárbaro e sensual. Seria ele também um bate-bola?
“Deínha, vamos pra rua ver o clóvis, vamos pro Encantado.” Sou tomada de uma agitação repentina. Me aprumo e em poucos minutos já estamos dentro do ônibus. Chupo picolé de côco e guardo uns pacotinhos de amendoim no bolso. Vovó Ceci fala muitas coisas que não encontram aderência na minha imaginação de criança espoleta. As palavras rodopiam no ar e se esvaem rápidas. Ela tinha amigos no Encantado. Imagino, lambendo o picolé, um lugar similar àquele das histórias infantis, mágico e cheio de beleza.
Estou sentada na calçada esperando o bate-bola. Já começa a escurecer e a tarde ganha uma tonalidade castanha, levemente alaranjada. Passam bailarinas prateadas, palhaços de olhos arregalados, máscaras apavorantes de macaco, de caveiras amaldiçoadas, o homem verde Hulk, o super-homem, a batucada com as sambistas rodopiantes, os namorados em beijos intermináveis. Penso, amuada, que o bloco não acaba nunca. “Este ano não vai ter bate-bola…” Talvez fosse 1978 ou 1979. A onda disco se espalhava velozmente e minha memória é visitada por flashes de meias de lurex coloridas, collants vermelhos, cabelos volumosos e sandálias plataformas brilhantes.
Estou sentada na calçada esperando o bate-bola. Espero. E o bloco passa, embalado numa gargalhada cósmica. Em meio ao frenesi e à cantoria coletiva, eis que surge o clóvis fazendo gestos amplos e extravagantes. Encapuzado, de calças bufantes, com o blusão preto de mangas longas e adereços reluzentes, ele grita, pula e bate violentamente no chão a bola de borracha (ou seria a bexiga de boi?). Sim, ele vem tocando o terror! Olho siderada para a foice da morte. Era mesmo prateada e descomunal? Sinto borboletas no estômago e a calçada movediça. O capuz preto, a máscara de tela com a caveira de dentes afiados, sua demonstração de poder, as luvas, os meiões, a foice macabra, as lantejoulas no peito. Levanto da calçada de-va-gar, num misto de fascínio e terror.
“Olha, Deínha, ele viu você… tá vindo falar com você”. Meu corpo está imóvel. O bate-bola para na minha frente. Não tem rosto. Não tem voz. E o bloco de carnaval emudece de repente. A figura negra faz uma breve reverência, com sua capa bordada e colossal, e me oferece a sua mão enluvada, que seguro firme. Saímos os dois andando em meio ao bloco. Tudo é noite. Tudo é silêncio. Tudo é agora. Sinto frio e reparo que meu coração pequenino bate revolucionado.
Quanto tempo se passou? O que se passou? Que distância percorremos? Vovó Ceci conta para família que foram alguns minutos. “Ah…? Ficamos de mãos dadas um tempão!”, retruco contrariada. A sensação, ainda hoje, é que o tempo arrumadinho, do antes e depois, sucumbiu desamparado naquele dia, naquela hora, naquela rua sem nome da Zona Norte.