Morava com minha família num subúrbio californiano. Era uma tarde ensolarada e monótona de domingo. Estava sozinha em casa com meu pai. Tinha sete anos. Naquela tarde modorrenta com aquela atmosfera desolada dos domingos, os domingos de rituais chatos, de vida acanhada, de pulsação lenta, eu perambulava pela casa iguais a tantas outras da rua classe média.
Ao entrar no banheiro, me avistei no grande espelho sobre a pia. Vi uma menina pálida com longos cabelos castanhos. Não me reconheci. Ensaiava um gesto que a menina do espelho replicava. Mas não era eu. Então onde estava eu se minha imagem era idêntica a mim e, entretanto, era outra? Meu grito sequer ecoou na pasmaceira daquela rua de casas avarandadas, jardins com grelhas de barbecue, garagens com carrões e crianças andando de bicicleta. Em mim algo se espantou. Aquele dilaceramento parecia despropositado no subúrbio acomodado americano dos anos 1960, numa Califórnia que tanto acalentava e simbolizava o American Dream.
Muitas décadas mais tarde, em 2020, estava sentada na frente do computador em pleno início da pandemia da covid 19. Retida num apartamento-bunker pela quarentena, minha comunicação com o mundo se dava por meio de telas e máscaras digitais da comunicação cibernética. A pandemia nos atingia num Brasil desmontado, brutalizado, sucateado. As mortes por covid se avolumavam. As tardes eram desgastadas no coro desencontrado de vozes e batucadas em panelas daqueles que gritavam seu repúdio ou apoio ao presidente.
Pela janela avistava trechos da cidade que tanto almejava. Mas os odores, o tacto e a tangibilidade do estar na rua eram vetados. Dava conferências no vácuo, somente meu powerpoint e meu rosto refletidos na tela. O estranhamento com minha própria face que eu experimentara quando criança, a percepção angustiosa de ser uma máscara ou de estar descolada do meu corpo agora se transformava numa prática performática para milhares de usuários. Em pluralidade de aplicativos sociais, as pessoas se inventam em imagens. As trocas sociais de intercâmbios de máscaras digitais se plasmam contra uma experiência esmirrada. Uma breve pausa presencial logo se transforma em imagem. Essa era uma das inquietações do surrealista, André Breton. O encolhimento da experiência e o cotidiano anestesiado em voyeurístico consumismo.
2022, ano em que se repensam os modernismos brasileiros e o bicentenário da independência em meio ao cenário de aguda incerteza, polarizações, miséria social, estagnação, deterioro, inflação, devastação ecológica e guerra na Europa. Os excessos e a folia sob o signo de Momo eram anualmente expurgados na Semana Santa. Agora, por conta da pandemia da covid 19, a festança é deslanchada depois. A rua está novamente habitada e vibrante em meio aos cacarecos de lixo, pessoas, ruínas.
Relembro as máscaras de carnaval, as minhas e as que foram celebradas por artistas. O carnaval de 1919 depois da gripe espanhola e o fim da primeira guerra mundial reputado com a maior e mais excessiva festança em toda a história do Rio de Janeiro.
No miolo da multidão suarenta, o corpo dançante e a face mascarada vibram na gota de tempo da epifania efêmera. O beijo entre dois mascarados anônimos cobertos de purpurina, suor e plumas coloridas. Com olhos fechados e bocas entrelaçadas, seus corpos são amalgamados no abraço da multidão. Por quê evoco esse beijo hipotético entre gente mascarada? Nostalgia? Saudades de experiências vividas? Lembranças de encontros inesperados no espaço público? Nostalgia do maravilhoso quando pousava suas asas de borboleta no ombro de uma senhora gorda vestida de lycra esperando o ônibus. Quando piscava numa poça espelhada numa rua cinzenta ou quando se enroscava como uma echarpe fina ao redor do pescoço de estátuas esquecidas do parque publico que pareciam chorar.