Espaços Modernistas e seus Arquivos Vivos

Ilustração. Géza Heller, 1938

É notório que a cidade do Rio de Janeiro, antiga capital da república, é até os dias de hoje palco para disputas entre correntes arquitetônicas e conceitos de governabilidade que se estendem dali para todo o Brasil. Um exemplo disso, está na aproximação do país recém-saído de sua Primeira República, com a arquitetura e pensamento modernista, algo que se consolidaria com a construção do Ministério da Saúde e Educação (MSE) durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Este edifício, ousado até mesmo para os padrões atuais, chama nossa atenção para a compreensão de que nossas cidades são arquivos vivos e que os percursos que atravessam nossos patrimônios, muitas das vezes iluminam os caminhos e as ideias que norteiam as nações. 

Onde hoje temos o Palácio Capanema, na Rua da Imprensa, no centro do Rio de Janeiro, funcionou a sede do MSE comandado pelo ministro Gustavo Capanema. Podemos dizer que nesse edifício, as disputas em torno do imaginário almejado pelo regime de Vargas se consolidaram, tornando este prédio exemplar para o modo como nossa herança patrimonial é capaz de favorecer a compreensão dos conflitos que movimentam nossas sociedades. Foi ao mineiro Gustavo Capanema que coube a definição das bases culturais que alicerçaram o regime varguista, quando nomeado para o Ministério da Saúde e Educação em 1934. Sua atuação foi responsável por mais do que postulações ideológicas ou deliberações quanto às abstratas narrativas tecidas para as gerações futuras, pois, foi seu ministério que amparou sobre o aço e o concreto um dos maiores legados do regime estado-novista, ou seja, a materialização do frescor e da novidade pretendidas pelo governo revolucionário a partir do prédio-sede do Ministério da Saúde e Educação.

Getúlio Vargas, como sabemos, foi vitorioso ao tomar as rédeas das revoltas tenentistas, ao mesmo tempo em que apaziguou o descontentamento das classes médias e oligárquicas ascendentes em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul. Aproveitando-se do desgaste do estado de forças da República do “café com leite”, os revoltosos assumem o poder em outubro de 1930 num governo de exceção que se estendeu por quase duas décadas. Este movimento que se pretendia revolucionário, autoproclamado “Revolução de 30”, deu seus primeiros passos em um Governo Provisório que buscou fortalecer a ideia de uma ruptura com o passado imediato, insistindo na crença de que o Brasil só poderia concretizar a ruptura almejada instituindo um novo Estado, forte e centralizado, capaz de garantir a segurança, a ordem e a harmonia geral da nação. Este “Estado Novo” foi pensado como um processo de transição inevitável com o curso natural do país carente de ambições coletivas.

Tomaz Silva/Agência Brasil

Na ânsia pela fundamentação simbólica de um país que estava estacionado no atraso de suas tradições e no primitivismo de seus abundantes recursos naturais, assentou sobre o ministro Capanema a abertura de concurso público arquitetônico, num momento em que o ecletismo arquitetônico ainda predominava, e suas poucas alternativas se davam entre o estilo neoclássico e neocolonial, afinal, os novos conceitos arquitetônicos modernistas, formulados dez anos antes, ainda não haviam sido assimilados pela opinião pública ou mesmo pela intelectualidade nacional. O desenrolar dos fatos comprova à perfeição o que poucas vezes foi tão bem documentado, como todo espaço em vias de planejamento é sempre ocupado por uma forma em detrimento de outras variáveis. Afinal, poucos dias após a definição do ganhador, o projeto “Alpha” de Arquimedes Memória, catedrático, diretor da Escola Nacional de Belas Artes e membro da Ação Integralista, Capanema se vê insatisfeito com o resultado e decide pela convocação de Lúcio Costa. O ministro, que era assessorado por nomes ascendentes do nosso modernismo literário como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, aceita uma ambiciosa sugestão de Lúcio Costa, que por sua vez mediará com o próprio Getúlio a vinda de Le Corbusier para colaboração com o projeto do ministério, assim como para definição do projeto de uma futura cidade universitária, espaço que somente três décadas depois se tornaria a sede da Universidade Federal do Rio de Janeiro na Ilha do Fundão. O edifício do Ministério da Educação e Saúde (MES) logo se tornou uma vitrine para a gestão de Capanema à frente do Ministério. Essa edificação, interditada até o presente momento, é de modo insuspeito, a materialização de um projeto de nação que ganhava corpo em paralelo à edificação do próprio imóvel onde seriam decididos os rumos da cultura e da identidade de uma nação de dimensões continentais.

Deste modo, não é exagero afirmar que a construção deste prédio estaria relacionada intrinsecamente à constituição da nova nação que debutava dentro de um amplo projeto cultural e estético, dedicado a trabalhar em uníssimo com as resoluções do campo político. Porém, sua trajetória não transcorreu sem críticas, a começar pelo estranhamento causado por seu projeto inicial que como outras obras características do modernismo, substituía os “fundamentos” assentados em um andar térreo, para a criação de uma base sobre pilotis. Como resposta à necessidade de vincular uma obra tão moderna e futurista, ainda para os padrões do início do século XXI, foi definido um grande painel em azulejos ornado com o já clássico azul dos tempos coloniais. Estava aí a solução encontrada pelos modernistas para manter um lastro com séculos de tradição.

Aline Massuca/Metrópoles

Em todo caso, a funcionalidade do prédio foi articulada para seguir os critérios de eficiência que levavam em conta não só a ventilação e a iluminação, mas de maneira a ordenar o fluxo de visitantes e funcionários, além do tráfego de documentos que completaria a ordenação administrativa. Essa condição proporcionava uma separação muito rígida entre o público e os servidores públicos, algo que dificultava não só a circulação física, mas proporcionava uma relação excessivamente hierarquizada no dia a dia da repartição. Esta separação era uma exigência já estabelecida como requisito básico para os projetos participantes do concurso público, que havia sido preterido. Porém, com o desenrolar das tensões que levaram ao fim do Estado Novo e a destituição de Getúlio em 1945 pelos militares, Capanema opta por facilitar o acesso do público, algo a se esperar em tempos democráticos que se distanciavam da autocracia estadonovista, de modo que o cidadão pôde experimentar uma relação mais horizontal com o funcionário que o atendia.

 A despeito de toda a polêmica vivida em seus primeiros anos, compreendemos que o prédio do MES encarnou com perfeição as intenções de modernização em um país permanentemente atravessado pelo apego à tradição, tendo sido um antecipador da construção de Brasília, ao elaborar o problema do novo enquanto herança para o presente.

Assim, como a metáfora de Freud sobre a justaposição de tempos e memórias passados sobre a cidade de Roma, do mesmo modo como acontece em nosso inconsciente, percebemos a presença efervescente de numerosas experiências ideológicas também em nossas cidades, e com estas, as pistas para a compreensão do instante vivido, assim como dos futuros imaginados pelas gerações passadas.

Vale destacar que após doze anos entre reformas, interdição e ameaças de venda, o atual “Palácio Capenama” será reinaugurado e candidatado à Patrimônio Mundial da UNESCO.   

Referências

JAGUARIBE, Beatriz. Ruínas modernistas. Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 1. Março, p. 99-115, 1997.

LACERDA, Aline Lopes de. A obra getuliana ou como as imagens comemoram o regime. Estudos históricos, v.7, n.14, p.241-263. Rio de Janeiro, 1994.

LISSOVSKY, Mauricio, SÁ, Paulo Sérgio. Colunas da educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1996, Minc/IPHAN, FGV/ CPDOC.

LISSOVSKY, Maurício, SÁ, Paulo Sérgio. O novo em construção: o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde e a disputa do espaço arquiteturável nos anos 1930 (in) GOMES, Ângela de Castro (org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

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