Meu título começa com estas palavras: “Em busca de imagens”. Alguém poderia se perguntar por que precisamos de mais imagens nestes tempos em que a comunicação de massa está repleta de imagens. Por que estou procurando por mais imagens em um momento em que somos confrontados e até mesmo sobrecarregados com a superexposição de imagens no noticiário, nas redes sociais e na publicidade? Não seria contraintuitivo reivindicar a busca de imagens quando, justamente , essa superexposição parece nos impedir de enxergar nitidamente. Hoje quero que exercitemos nossa visão, nossos olhos, nosso olhar. Tornou-se um lugar-comum ouvir nos meios acadêmicos e artísticos que devemos deslocar a visão porque ela tem sido o sentido privilegiado desde o Iluminismo. Quero argumentar hoje que é mais urgente não descolar nosso olhar, mas colocá-lo de uma maneira diferente. E a única maneira de fazer isso é ver em detalhes as imagens que se repetem, que estão superexpostas. Nesse caso, quero aguçar nosso olhar para os monumentos que são figuras cruciais nas negociações estético-políticas que ocorrem durante greves e manifestações sociais.
Vamos nos situar no surgimento da greve colombiana que começou em 28 de abril de 2021. A greve começou como uma resposta à reforma tributária proposta pelo governo de Iván Duque (2018-2022), mas se tornou uma manifestação coletiva de inconformidade com o projeto de Estado-nação, com o conflito armado e a brutalidade militar e policial que continua a sustentar a desigualdade econômica e social na Colômbia. Pessoas de todo o país se organizaram para protestar, incluindo estudantes universitários e secundaristas, sindicatos de trabalhadores, movimentos ameríndios organizados sob o nome de Guardia Indígena, população afro-colombiana e coletivos feministas que foram às ruas para se manifestar contra o governo por pelo menos dois meses.
Em um momento em que a pandemia era devastadora, diferentes setores da população colombiana se encheram do que Miguel Rojas Sotelo e Laura Quintana chamaram de “Digna rabia” — ecoando o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Em consonância com suas posturas, concordo que essa greve adquiriu uma dimensão estético-política que é importante destacar. Além disso, a forma como a greve foi registrada não teve precedentes na história do país. Durante mais de um mês, no Facebook e no TikTok, foram gravados vídeos ao vivo dos protestos em diferentes cidades. Nesses vídeos, ao contrário da maneira como os protestos eram visualizados nos dias passados, adquirimos o ponto de vista não do jornalista, mas do manifestante. Foi um movimento social superexposto em termos de visualidade. Assistimos a imagens de raiva, inconformidade e luta nos espaços domésticos e sem o enquadramento habitual com o qual estamos acostumados a assistir, que é o noticiário.
Não apenas isso, mas um outro elemento em que a visualidade foi alterada durante esse protesto foi a derrubada de monumentos e estátuas em todo o país. Em 7 de maio, depois de uma semana do início da greve, a estátua de Gonzalo Jímenez de Quesada, explorador e colonizador espanhol, também conhecido como “fundador de Bogotá”, foi derrocada por um membro do Misak, um povo ameríndio colombiano. Esse fato não é inédito. Em 16 de setembro de 2020, em Popayán, no sudoeste da Colômbia, os indígenas Misak derrocaram uma estátua equestre de Sebastián de Belálcazar, também reconhecido como um “conquistador” e militar espanhol que fundou as cidades de Quito e Guyaquil. Em Cali, um dos epicentros da greve colombiana em 2021, outra estátua de Belálcazar também foi derrubada pelos Misak.
No gesto por trás dessas ações, há uma intenção de alterar a visualidade do espaço público da cidade. Esses monumentos cumprem o papel de heroificar um indivíduo que foi um colonizador e promoveu o extermínio dos povos ameríndios, bem como o comércio transatlântico de escravizados. Parece fácil, então, entender a “digna rabia” dos Misak. De certa forma, os manifestantes queriam mudar a história: reescrevendo ou revisando, em um gesto iconoclasta, a paisagem que exaltava essas figuras colonialistas.
É por isso que quero trazer uma figura mais complicada que interveio durante essa greve: o Monumento aos Heróis (Monumento a Los Héroes), inaugurado em 1963, projetado pelo arquiteto italiano Emilio Mazzoni e com uma estátua equestre de Simón Bolívar — projetada pelo escultor francês Emmanuel Frémiet. Esse foi um monumento construído em memória dos soldados de diferentes grupos armados que participaram da independência dos países bolivarianos e foi considerado Patrimônio Cultural e Bem de Interesse Público para o país. Em um primeiro momento, é um monumento que comemora a independência da colonização e mostra a divisão entre o período colonial e o republicano. Ele destaca os “Héroes de la Patria”. Os heróis da independência, que são os militares, são considerados heróis no discurso nacional. O mesmo sentimento de heroísmo que está por trás do status dos colonizadores parece ser reproduzido na visualidade desse monumento aos heróis da independência que foram mártires da pátria.
Permitam-me fazer algumas perguntas que me possibilitem desenvolver a associação que estou propondo entre a noção de mártir, herói, colonização, independência e revolução. Como o sentimento patriótico de independência pode assemelhar-se ao discurso de utopia da esquerda dos anos 1960 e 1970 e ainda estar enraizado nos movimentos sociais que vemos hoje na América Latina? Quais são as ressonâncias desses “heróis da independência” com os heróis da utopia de esquerda que ainda vemos reproduzidos nas greves da América Latina? Por fim, como essas conexões abrem a possibilidade de buscar outras imagens de revolta, greve e revolução — sem a necessidade da figura do herói e do mártir?
Em Planetary Longings (2022), Mary Louise Pratt reivindica “a criação de um conjunto diferente de indicadores, uma infraestrutura epistêmica que seja, se não descolonizada, pelo menos descolonizadora” (2022, p. 241, tradução nossa). Esse desejo de romper com as estruturas coloniais está presente justamente porque autores como ela, Silvia Rivera Cusicanqui, Luis Camnitzer, entre outros, concordam que a colonialidade tem sido reproduzida de formas complexas e mais do que binárias em todo o mundo. Por exemplo, de acordo com Cusicanqui, houve o que ela chama de “recolonização” não apenas no âmbito do Estado e da economia, mas também no âmbito acadêmico: “reciclagem das elites e a continuidade de seu monopólio no exercício do poder” (2010, p. 46). Ela se posiciona de forma contrária a conceitualização de colonialidade de Walter Mignolo encoberta e protegida pela academia norte-americana, de modo que, em suas palavras, acabou tornar-se uma “versão logocêntrica e nominalista da descolonização” (2010, p. 64). É possível ler o monumento como uma recolonização?
Gostaria de colocar que, observando a intervenção nos monumentos durante as manifestações, podemos cruzar a divisão colonial que separa o período da história colonial, o republicano e os que são rotulados como revolucionários, característicos do século XX na América Latina.
Com isso, é impossível não pensar na relação entre estética e política que parece ser característica dos países coloniais, especificamente no século XX e, particularmente, tendência nas décadas de 1960 e 1970 com os manifestos que estavam sendo produzidos na América Latina, nos quais a câmera era considerada uma arma contra o “neocolonialismo”. Em uma linha diferente, décadas depois, Albie Sachs, em um artigo que apresentou no Congresso Nacional Africano em 1990, propõe “banir” o ditado que diz que “arma é uma cultura de luta” (1990, p. 19, tradução nossa). Quais são as tensões embutidas nessa relação entre estética e política na mistura transcultural, nos museus, nas instituições, no mercado, na academia? Eu diria que, seguindo as recomendações de Cusicanqui e Pratt para uma prática descolonizadora — em vez de uma disciplina ou um conjunto de conceitos —, poderíamos rastrear como ver e nos envolver com as expressões culturais em objetos que permanecem não descobertos ou ilegíveis. Isso nos permitiria ir além do binário simplista do “nós” e “eles”, do colonizado e do colonizador, do pré-hispânico e do europeu — dualidades que dominam os termos da discussão sobre a transculturação. Em outras palavras, que outros encontros estamos deixando de lado? E como chegar até eles abrirá possibilidades de traçar uma política na estética que supere esse conjunto de dicotomias?
Em resposta a essa grande questão, e para voltar após essa digressão sobre arte, imagens e colonialidade, considero as intervenções no Monumento aos Heróis (Monumento a Los Héroes), durante a Greve Nacional Colombiana cruciais para entender a colonialidade, a luta, a política e a estética. O Monumento aos Heróis (Monumento a Los Héroes) torna evidente a associação entre heróis e guerra, entre heróis e militares, entre heróis e uma lógica de guerra.
No mesmo livro de Mary Louise Pratt, ao qual me referi anteriormente, ela faz uma reflexão sobre o que chama de “The Ghosts in the Plaza de la Tinta” em Tinta, Peru. Um dos fantasmas é a estátua de bronze de Túpac Amaru, como o “héroe de la patria” e, como ela observa, Micaela Bastidas, sua esposa, copartícipe e estrategista militar, é representada “de joelhos, atrás do marido, na mesma altura da criança” (2022, p. 237, tradução nossa). Pratt discorre sobre como esse monumento esconde um gesto patriarcal e, ao mesmo tempo, heroiciza uma figura indígena contra o colonialismo. Aqui, Pratt pondera como a noção de herói — que é paralela à noção de salvador masculino — é atravessada pela colonialidade e pelo patriarcado. O que essa imagem de Túpac Amarú nos diz sobre os Heróis da Independência da Colômbia? Como as imagens dos heróis da independência também se relacionam com os heróis da revolução?
Retornemos a 2021. Enquanto em Bogotá o centro da cidade é o local de afluência, dessa vez, esse monumento se tornou um dos epicentros da greve. Esse monumento sofreu intervenções de diferentes maneiras, com grafites e performances durante dois meses. Quem são os 6402 heróis que estão cobrindo ou reescrevendo os heróis da Independência?
Para entender essa inscrição, é importante relembrar a história dessa edificação. Esse monumento ficava no cruzamento de duas grandes avenidas de Bogotá: a Avenida Caracas e a Calle 80. Foi planejado em 1952, durante o governo de Laureano Gómez, como uma homenagem aos soldados colombianos que estavam na Guerra da Coreia, no contexto da Guerra Fria. Após o golpe de Estado em 1953, Gustavo Rojas Pinilla, o militar que assumiu o governo, mudou o plano e decidiu usar o local para construir um monumento em homenagem aos soldados que morreram durante as guerras pela independência. Consistia em uma torre de pedra retangular de 60 metros com as inscrições dos nomes de diferentes soldados. A torre tinha uma sala-museu em seu interior que fazia parte do Museu Distrital de Bogotá. No lado norte, havia uma estátua equestre de Simón Bolívar, na qual havia uma inscrição em latim — parte do testemunho político de Simón Bolívar: “Colombianos! Meus últimos votos são para a felicidade do país. Se minha morte contribuir para o fim dos partidos e a consolidação da união, descerei ao túmulo em paz”.
Por que, no contexto da greve colombiana, a população decidiu fazer um grafite no monumento com “6402 heróis”? A JEP (Jurisdição Especial de Paz), em fevereiro de 2021 — dois meses antes do início da greve — publicou um documento estabelecendo que, durante o governo de Álvaro Uribe Vélez, entre 2002 e 2008, pelo menos 6.402 civis foram mortos pelos militares e falsamente passados como combatentes inimigos. Embora diferentes veículos da imprensa e jornalistas independentes tenham denunciado essas execuções extrajudiciais conhecidas como Falsos Positivos durante anos, foi apenas em 2021 que uma instituição do Estado as reconheceu. Soacha, uma cidade próxima a Bogotá, foi um dos diferentes locais onde menores de idade foram sequestrados e mortos pelos militares.
Parte das pessoas que se reuniram em torno do monumento durante a greve eram, em sua maioria, jovens estudantes, tanto de universidades quanto de escolas de ensino médio, e jovens que, devido à precariedade do sistema educacional, não tiveram acesso à educação formal. Quando a número se tornou público, em toda Bogotá pudemos encontrar esses panfletos com a legenda: “Quem deu a ordem?” E com alguns dos rostos dos líderes militares atuais. Para denunciar, os manifestantes intervieram com o número seguido da palavra “Heroes”. Como Jean Franco observa em Cruel Modernity, “o discurso cristão e o revolucionário compartilham o ideal do sacrifício” (2013, p. 138, tradução nossa). Considerando o cristianismo como uma ferramenta importante para exercer o poder durante o período colonial, o sacrifício seria o laço que parece conectar colonização, independência e a revolução.
Dias depois que as fotos do monumento com a intervenção foram compartilhadas nas redes sociais, a MAFAPO (Madres Falsos Positivos de Colombia) publicou um tweet dizendo “Nossos filhos não são heróis, eles são vítimas”. As mães estavam contestando a forma como os manifestantes estavam intervindo nos monumentos, fazendo aquilo que elas estavam criticando, reproduzindo a lógica bélica do herói-mártir que está por trás da organização militar e revolucionária. E, especificamente, mostra como as mães estavam observando atentamente a intervenção no monumento. A noção de herói é materializada aqui tanto no monumento quanto em sua intervenção. Nesse sentido, os jovens executados pelos militares são considerados mártires e heróis da mesma forma que os soldados que faleceram durante as guerras de independência. Em uma espécie de operação sinistra, Belálcazar e Simón Bolivar são vinculados e equiparados a MAFAPO (Madres Falsos Positivos de Colombia). O monumento, então, se torna um local complexo no qual diversas facetas da greve são expostas: a crítica ao colonizador europeu, a aversão aos militares e ao Estado-nação, a heroização das vítimas do mesmo Estado e, finalmente, a resposta das Mães.
Dias depois do tweet, o monumento foi alterado. A palavra “heróis” foi coberta com um punho e em uma das grades da avenida podíamos ler: “6402 motivos”. A contestação das Mães pelo Twitter possibilitou a negociação de significados entre os manifestantes por meio do monumento. Esse monumento se tornou um material vivo para a greve em que a estética interveio na política. Enquanto a imprensa exibia essas ações para “vandalizar a arte pública”, a greve revelou como essas intervenções tornaram possíveis e legíveis as maneiras pelas quais a colonialidade se transpõe na forma como lutamos e encontramos significados da revolução. Dessa forma, as Mães fizeram com que os manifestantes, nós, víssemos melhor como a mesma noção de heróis é adulterada em um país onde aqueles que são considerados heróis — os militares — são os mesmos que executaram as execuções extrajudiciais. Ao mesmo tempo, as Mães apontaram como, por trás da figura do herói-mártir, há uma fixação no sacrifício que pode ser rastreada tanto no colonialismo quanto no período republicano e na utopia da esquerda.
Estas mães me fizeram pensar que estamos em busca de outras imagens. Não estamos em busca de mais heróis dispostos a se sacrificar pela pátria ou pela revolução. Em um país profundamente marcado pela morte devido ao conflito armado e ao colonialismo, não precisamos de mais mortes, luto e sepulturas. As mortes não são sacrifícios para a revolução. A intervenção nesse monumento mostra a necessidade de buscar a vida, uma pulsão de vida e alegria que supere o sofrimento e a crueldade.
Em dezembro de 2021, passei pelo local onde ficava o monumento: ele não existe mais. O governo o demoliu porque seria um dos locais para uma estação de metrô — um metrô que ainda não foi construído. A estátua equestre de Bolívar será levada para o Parque de la Independencia, um parque “público” com horário determinado, de difícil acesso e com bares ao redor. Naquele momento efêmero, em que a demolição e a realocação da estátua foram feitas, vemos o cavalo livre do cavaleiro, Simón Bolívar. Parece um presságio, ou uma confirmação do presságio provavelmente assinado quando os Misak derrubaram as estátuas dos colonizadores. O cavalo está livre de seu dono, seu herói. Este momento de revolta parece ser crucial a esse novo olhar que o monumento — e a intervenção das pessoas durante a greve — quer invocar. Vamos deslocar nosso olhar para revelar as maneiras pelas quais algumas figuras — como o herói e o mártir — permeiam a forma como nos revoltamos e reivindicamos nossos direitos, vida e justiça. Essas Mães estavam observando a necessidade de vitalidade na maneira como nos rebelamos. Vitalidade é o que esse monumento, mesmo que agora tenha desaparecido, mostrava. Vitalidade são as ruas cheias de pessoas. Vitalidade é preencher os espaços em branco do monumento por meio do diálogo e preencher os espaços públicos com arengas, dança e som. Talvez esse monumento tenha exigido o que as mães veem, e a utopia da esquerda não: precisamos buscar a vida, não queremos mais mártires, não queremos mais imagens heroicas. Talvez o que queremos, o que buscamos, é aquele momento em que o cavalo se liberta do herói, é aquele movimento que marca uma pulsão de vida contra toda necropolítica e contra toda necronarrativa.
Referências
Cusicanqui, Silvia Rivera (2010). Ch’ixinakax utxiwa : una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Tinta Limón.
Franco, Jean. (2013) Cruel Modernity. Duke University Press.
Pratt, Mary Louise. (2022) Planetary Longings. Duke University Press.
Sachs, Albie. (1990). Spring is Rebellious : Arguments about Cultural Freedom. Buchu Books.