No dia 7 de julho de 1960, José Augusto Nascimento Guerra foi aos Correios. Tinha nas mãos um punhado de folhas datilografadas que seguiriam viagem até Recife, a pouco mais de dois mil quilômetros de distância, onde encontrariam Rildacy, Ana e Kido, sua esposa e filhos pequenos. Chegou ao balcão e abriu as folhas dobradas ao meio, apoiando os dedos no canto superior direito do papel. Ao retirá-los, viu duas marcas: suas digitais, perfeitamente impressas em um vermelho-alaranjado na superfície em branco. Pegou a caneta, desenhou uma seta e escreveu: “essa é a cor da poeira do balcão dos Correios”. O contexto viria algumas linhas depois, escritas algumas horas mais cedo: “A área entre os edifícios é areia vermelha no duro. Um ventinho qualquer e a poeira entra pela cara da gente. Cara, roupas, bolsos, cabelos, boca. Imagine-se naquelas cidades sem calçada nem calçamento e areia solta. Assim é onde moramos”. Dois dias antes, José havia chegado em Brasília.
A carta começa assim:
Minha Dácy,
aquele corre-corre e faz isso e aquilo da mudança, iniciada aí, ainda prossegue. Cheguei às 9 horas de terça-feira, peguei as chaves logo depois e contratei com alguns dos homens da mudança que poderíamos começar à 1 hora da tarde. Almocei no SAPS a 120,00 com sobremesa. Gente de enganchar. Comida razoável.
À 1 hora fiquei de papel na mão registrando as entradas. Tudo certo, sem faltar nada. Dei logo de beber água à planta grande e à pequena. A outra, do jarro novo, onde ficou? Você deu à Tita? Ajudei os homens a desmontar os caixões de louças. E lá pelas 4 da tarde, tudo pronto, espalhado no chão.
Foi assim que minha família chegou a Brasília. Bem, parte dela. José Augusto Guerra era meu avô paterno, pai do Kido, um apelido mais apropriado para uma criança de um ano que o nome de batismo Euclides Augusto, dado em homenagem aos avós. Meu outro avô, pai da minha mãe, um outro José, engenheiro da Novacap, chegou à recém-nascida capital do Brasil também nessa época. Mas dessas cartas não tenho notícias. Dizem minhas tias que minha avó as teria jogado fora, de raiva. Mas essa é uma outra história.
Nosso José, o Guerra, era funcionário da Câmara dos Deputados, como denuncia o selo do canto superior esquerdo de várias das correspondências, e foi realocado na nova sede do governo poucos meses após a inauguração, seguindo a “operação mudança” dirigida pelo deputado Neiva Moreira, conforme anunciado em 26 de julho de 1960 pelo Correio Braziliense.
A matéria destaca a precariedade em termos de acomodações e transporte com que os funcionários do Legislativo se deparavam quando chegavam ao Planalto Central, e que meu avô experimentou em primeira mão e narrou com um certo tom romântico que logo se transformou em fastio. Pouco antes de se tornar um incômodo, a ausência de persianas no apartamento, por exemplo, foi narrada da seguinte maneira, na carta de 7 de julho: “No dia seguinte, quem me acordou foi o clarão do apartamento. O sol a gente vê nascer. E eu o vi bem ontem: foi crescendo devagarinho, levantando-se e daqui a pouco todos os quartos e sala ficaram daquele jeito. Aqui o IAPC não instalou persianas. O sol bate de rijo, violento. Muito bom mesmo.” A carta segue:
O objetivo agora é aprontar o apartamento. Uma desordem. A empresa construtora ainda não havia liberado o apartamento. Portanto encontrei-o incrivelmente sujo, sujo de construção recém-concluída, tudo sujo mesmo, nem passar a vassoura passaram. Ainda não haviam testado nem a água nem luz nem gás. Agora estão consertando os tacos soltos, devido ao sol intenso. O bombeiro da empresa (por enquanto, até a entrega do edifício que ainda está com os corredores e área de baixo às escuras) está aqui. Deu enguiço no chuveiro, na pia, no aquecedor, na porta da cozinha, no banheiro da empregada. Em quase tudo. E eu ainda com tudo desarrumado. Que coisa séria essa história de mudança!
Além de persianas, faltava uma série de outras coisas, como José conta em carta do dia 18 de julho, aparentemente respondendo a um pedido ansioso de minha avó para que ele falasse de Brasília com realismo e explicando como era a vida na nova cidade – que, como ele mesmo escreve, “cidade mesmo não existe. Está em construção”:
Você me pede que lhe fale, com realismo, sobre Brasília. Creio que uma semana é suficiente para sentir a nova capital e a outra semana para analisar-lhe o funcionamento.
Em princípio, tudo está surgindo aos poucos. (…)
Não há leite de vaca em Brasília. Uma carrocinha passava sempre às 7 horas, mas a polícia sanitária deu em cima e acabou. Tinha água. Espera-se que a CCPPL ou outra empresa qualquer resolva trazer sua organização para Brasília. Por enquanto, uma empresa desse tipo não dá lucro. O consumo não será suficiente para cobrir os gastos de instalação e despesas de empregados. E por isso, ainda por certo tempo, não sei quando (a não ser que o próprio governo instale a usina de pasteurização) não teremos leite bom, de vaca. A solução é o Ninho. É o que tenho feito. O preço varia de 94 a Cr$ 100 a lata pequena. Aquele solúvel não apareceu aqui. Mas a composição é a mesma do Ninho.
Sobre pão, ontem descobri na W-3 (rua do Comércio) uma padaria que entrega a domicílio. Dei meu nome. No começo, 2 pães pequenos a Cr$ 3,00 cada um. O pão daqui não é ruim não. Bolachas, biscoitos, etc não faltam.
Carne. Começa a tornar-se um problema sério. A Novacap só dispõe de um supermercado, que fica a 15 ou 20 minutos daqui de casa. Ora, segundo os entendidos, cada supermercado deve atender a uma procura diária de 2 000 pessoas. Mas há tanta gente chegando que sábado, conversando com um dos gerentes do mercado, ele me disse que perto de 6 000 pessoas estão comprando diariamente. A solução será a construção de outro super ou então que a iniciativa privada comece a fazer concorrência. É o que. está acontecendo. Esta semana já estará em funcionamento a Casa Colorado, aqui na rua do Comércio, com entrega a domicílio. Mas o que acontece é que, quem aparece no balcão da carne depois das 9 da manhã, dificilmente encontra carne que presta. É de 2a. para baixo. Nada de filé, de alcatra, de chã-de-dentro. (…)
Há também escassez de legumes, que somente se consegue ou indo cedo ao mercado ou aos sábados à cidade livre. Não posso adiantar-lhe melhor esse ponto, porque ainda não fui de manhã ao mercado.
Não existe feira. (…)
Bem, esta é a realidade sobre Brasília. Uma cidade que está cheia de problemas, que não funciona a tempo e a hora, que necessita de mercados, de serviço de coleta de lixo mais perfeito, de artesãos que consertem os sapatos, lavem nossa roupa, vendam linha e agulha. Alfaiate é fruta rara. Existe um na cidade livre. Barbeiro só existe na Câmara e engraxate é o que se vê na cidade.
Eu falo em cidade, mas cidade mesmo não existe. Está em construção. O comércio propriamente dito fica no eixo monumental, onde constroem a rodoviária, as plataformas rolantes, os restaurantes, os hotéis, as lojas de alto gabarito. O que se vê agora é comércio de área de vizinhança. (Quatro superquadras formam uma área de vizinhança.) Lá estão trabalhando intensamente (no eixo monumental) mas acredito que somente dentro de 2 anos é que tudo estará funcionando.
Se algumas coisas faltavam, outras, por sua vez, sobravam. Duas, especificamente, parecem definir o que era aquele grande canteiro de obras, e ambas transbordam pelas beiradas das cartas de José para Rildacy: poeira e esperança. A primeira, ilustrando – literalmente, inclusive, como vimos – a vida no Planalto Central, presença constante tanto no interior do apartamento funcional e da Câmara quanto nas ruas apenas semi-pavimentadas da nova capital, levantando voo no vento seco do cerrado de julho: “A gente depois cospe e lá está o vermelho do pó. Aqui tenho feito gargarejos de colubiazol. Apenas por precaução” (carta de 26 de julho). O colubiazol, diga-se de passagem, não preveniu uma infecção nos brônquios do meu avô, cuja causa foi atribuída ao excesso de poeira. E a segunda, como moldura subjetiva daquela paisagem que um ano antes André Malraux apelidaria de forma certeira de “Capital da Esperança”, que viraria o mote da cidade e povoava o imaginário dos meus avós (o outro José, o Rivera, falava com orgulho sobre como resolveu abandonar sua cidade-natal e então Distrito Federal para receber metade do salário na Novacap – intuindo, com razão, que algum tempo depois veria um bom retorno financeiro; Brasília, afinal, era a terra das oportunidades). Para o Guerra, a esperança se estendia também ao casamento, e a empreitada de Juscelino Kubitschek – ou Juça, como ele o chamava nas cartas – funcionava como uma espécie de metáfora da vida conjugal:
E acredito que, aqui nesta Brasília ainda em construção, Brasília de poeira e de esperança, a gente se encontre ainda mais profundamente, enraíze-se mais, tenha mais possibilidades de nos darmos e de nos completarmos, você com essa beleza que não conheço mais bela, essas feições de mãe e de mulher, de minha esposa muito querida, inconfundível. É que nascemos, agora acredito como antes, bem antes do primeiro encontro, para somente nos pertencermos, minha Dácy. (carta de 26 de julho)
Mas a esperança de uns é o desespero de outros, e particularmente, segundo José, dos cariocas forçados a abandonar a “Velhacap”, em suas palavras. Como o bom jornalista que era, meu avô, nos primeiros dias de Brasília, recolhia quantos depoimentos pudesse daqueles que construíam, literal e metaforicamente, a nova capital, como ele próprio conta. Mas, nas cartas, abandona uma suposta neutralidade e afirma com veemência:
Brasília, não há dúvida, é formidável. Tenho conversado com muita gente: candangos, altos funcionários, barnabés, donos de lojas, professores que moram nos JK, etc. E, adotando aquela velha técnica jornalística de ser baralho, como diz a Ridete, anoto coisas curiosas. Quando me encontro com um desesperado em Brasília, ajudo a conversa, dou corda e ouço coisas terríveis. Quando me encontro com um entusiasta, digo: “Se é assim que você está dizendo, é mesmo formidável. Essa gente que reclama não pode querer que Brasília seja o Rio. Assim como seria um absurdo exigir de uma criança de dois anos que pense como se tivesse dez anos. Com o tempo esses defeitos melhoram.” (…)
Mas, pondo de lado o baralho, eu acho isso daqui (com visão para o futuro de dez anos para frente, e o que são dez anos?) uma cidade extraordinária. O comércio será intenso. Já existem mais agências bancárias do que em Maceió. E só tem, praticamente, dois meses e meio de idade. (…)
Na Câmara, as opiniões se dividem sobre Brasília. Há quem a deteste (…) A maioria dos cariocas detesta isso aqui. Nancy me disse: “vou fazer qualquer concurso, mesmo de seja lá o que for, para voltar para o Rio.” E as expressões são estas, na Câmara: “isto é o fim, um inferno, não se tem conforto, uma tristeza, um miserável esse Juscelino, vou votar no Jânio, uma desgraça como essa não poderia ter acontecido comigo” e coisas desse tipo. Eu ouço e consolo: “dá-se um jeito.” Mas não há jeito, todos sabem. O jeito é ver mesmo essa cidade crescer. E como cresce. (carta de 7 de julho)
De fato, ao longo das cartas acompanhamos com detalhes o rápido crescimento de Brasília. Três semanas após a chegada, José escreve:
Apenas estão terminando as calçadas que dão para os apartamentos. Já não piso tanta areia quanto na primeira semana. As tubulações de esgotos estão sendo montadas em toda a superquadra. Prossegue a construção na escola de Aninha, o reboco e ampliação do cinema. Estão montando persianas na outra quadra, 306, do Iapc. Logo, dentro de um mês talvez cheguem por aqui. (carta de 26 de julho)
O apartamento ficava no bloco K da superquadra 106, na Asa Sul, ao lado do Cine Brasília, onde meu avô contava ir regularmente. Na época, pela ausência de prédios nas 200 e 400, ainda se via dos fundos a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional, onde ele trabalhava. Minha tia, a Ana, conta hoje em dia que se lembra de esperar na janela, no final do dia, o carro azul de seu pai fazer o percurso de volta a casa enquanto ela observava-o. 63 anos depois, já não se vê o Eixo Monumental cortando a paisagem.
E por falar em janelas, o drama das persianas, mencionado também nessa carta de 26 de julho, demoraria mais um tempo para ser resolvido. Quase 3 meses depois, em uma carta de 14 de outubro, José ainda reclamava dessa questão, assim como da ausência das gavetas dos armários, em meio a reflexões sobre o futuro do país – e o seu próprio, o de sua família – após a vitória de Jânio Quadros e críticas ao então prefeito de Brasília Israel Pinheiro.
Então rezei sozinho, pensando em você, no que ainda teremos de viver, no futuro, embora não nos devamos tanto preocupar com o futuro. Enfim, dependemos de tanta coisa! De um mundo inquieto, marchando para uma luta sem pé nem cabeça. E, internamente, com a vitória do Jânio (espero que faça um bom governo), que será de nós, do País, de Brasília? Alguns observadores acham que isto aqui vai melhorar. O capital paulista vai entrar de rijo. Também confio nessa opinião. Não pelo que Jânio tenha dito: “Juscelino construiu Brasília; eu vou torná-la habitável”. Mas pela sequência natural dos acontecimentos, a busca de novos mercados, a interiorização do País. E Brasília é um ponto chave, o centro das decisões governamentais. Está faltando um bom prefeito. O dr. Israel é péssimo. Reina desordem no acabamento das obras iniciadas. O interior das superquadras, por exemplo, já podia estar mais adiantado. Em vez de começarem as coisas e terminarem, não: pavimentaram parte de nossa quadra. Mas deixaram pela metade e o que está em fase de conclusão, está se estragando. A gente é inclinado a pensar em marmeladas, para se refazer o trabalho. O caso das persianas é típico. E também das gavetas dos armários. A gente reclama, dizem que a verba foi aprovada, mas não sai nada de definitivo.
Também em outubro, no entanto, José começa a demonstrar certa preocupação com um outro futuro, o dos filhos: “Tenho pena do Kido e da Aninha: eles nunca irão sentir amor a terra nenhuma. Se viverem em Brasília mais uns dez anos, não creio que tenham por isto aqui o mesmo encantamento do velho pelo seu nordeste de quatrocentos anos de subdesenvolvimento”. O trecho parece uma resposta a outro que ele próprio publicou no Correio Braziliense no dia 6 de novembro, uma resenha do ensaio “Uma fórmula para a civilização brasileira: Olinda completada por Olanda”, de Gilberto Freyre, publicado em julho daquele ano na Revista Nordeste, em que meu avô afirma:
Porque falta a Brasília a alma de uma cidade, apesar da beleza monumental de suas avenidas e da linha ática de seus palácios que certos homens viajados, num confronto histórico, querem ver no Alvorada traços arquitetônicos do palácio dos Bórgias? (…) É como afirma com razão o sr. Gilberto Freyre: Olinda não socorreu Brasília: Olinda participou, muito pouco, da construção de Brasília. Pensaram nas Olandas – na influência europeia, nos hábitos europeus, esqueceram que se construía nos trópicos e para o homem de civilização mais fecunda e autêntica dos trópicos – o homem brasileiro. (…) Brasília se excede de luz e vidro no exterior: e de penumbra e subterrâneos no interior. Luz e sombra nunca tropicalmente bem dosados, mas num desequilíbrio constante, apesar da leveza das formas, de sua beleza incomparável, do jogo realmente fascinante que o compasso e a régua, a linha reta e a linha curva deram às construções que estão nascendo no planalto. Mas Brasília ainda sem alma brasileira, tão necessitada da alma tradicional de Olinda.
Alguns meses depois, Kido “ensaiava os primeiros passos no barro vermelho de uma superquadra da nova capital recém-inaugurada”, como diz a minibio de seu livro de crônicas Com o céu entre os dentes, de 2005, publicado quando ele tinha 46 anos e eu, nove. As crônicas, muitas delas publicadas também no Correio Braziliense, tratam de diferentes momentos daquelas mais de quatro décadas de existência de Brasília, desde sua infância fugindo dos “graminhas”, funcionários públicos responsáveis por expulsar as crianças da grama recém-plantada das quadras, até situações da vida conjugal com minha mãe vividas meses antes, passando por momentos de sua adolescência e até mesmo projeções para a minha, que nem ele nem meu avô viveram para ver (e, quem sabe, contar). Em uma das crônicas, a que dá nome ao livro e que também foi o título de uma peça de teatro escrita por Kido em seus 20 e poucos anos, o narrador pega a bicicleta de madrugada e pedala até o Lago Paranoá para ver o sol nascer:
Não sentia cansaço quando parou pela primeira vez desde que deixara a 106 Sul às três da manhã, na Ponte Costa e Silva, seduzido pela esperança de ver o sol nascer no Lago Paranoá, o que jamais fizera. Já eram umas seis horas.
O sol nasceu redondo e quente, afastando as nuvens e dourando as águas do lago. Foi uma sensação esquisita, um misto de plenitude e melancolia. Estava sozinho, não tinha com quem dividir aquele momento de êxtase. Era um misto paradoxal de pertencimento e desprendimento. Um sentimento ambíguo de alegria e angústia.
Quisera poder congelar aquele instante revelador pela eternidade. Quisera poder domar aquele sol vermelho e gordo nascendo e refletindo no lago. Quisera possuir aquele céu multicor, tê-lo sob seu domínio, sob sua posse poder cravá-lo entre os dentes. Pelo resto da sua existência.
Parece ser em algum ponto do “misto paradoxal de pertencimento e desprendimento” que Brasília se encontra para aqueles que cresceram com ela, ou que a viram crescer. E na esperança de ver o sol nascer – o mesmo que encantou meu avô naquela primeira carta escrita dois dias após sua chegada em Brasília, que meu pai quase seguramente não leu – nas bordas do horizonte plano que rodeia a cidade, e deixar ali também uma marca vermelha como impressão digital.