A cena se repete, manhã após manhã. Enquanto espero para atravessar a rua com os cachorros, o clarão no gramado do outro lado quase me cega: às 8h o sol bate no saco plástico estendido ao lado de uma das árvores. Espero mais um pouco e o taxista atravessa a rua para urinar ao lado do saco. Os cachorros ficam indóceis, atravesso a rua.
O plástico guarda um homem — do frio da madrugada, da chuva eventual dos últimos dias, da urina do taxista. Todos evitamos o plástico que guarda o homem, que às 8h10 se levanta, coloca a mochila nas costas e sai, deixando seu espectro lá, dentro do saco, que mantém o formato do corpo do homem. Cadáver. Corpo abjeto. Nos remete à nossa própria mortalidade, nos remete aos corpos mortos pela covid, empilhados, que as redes sociais nos exibem à exaustão. Nos remete a outra pandemia, a do capitalismo, que patrocina desigualdades para as quais fechamos os olhos. Se urinamos no plástico que guarda o homem, se damos a volta para não olhar o espectro que o saco protege, não tem homem, não tem miséria, não tem morte.
Amanhã, às 8h, enquanto espero para a atravessar a rua com os cachorros, o sol vai bater no saco plástico que guarda o homem e o taxista vai urinar na árvore ao lado. E eu vou desviar.
(Texto escrito em junho de 2020, primeiro ano da pandemia do coronavírus)